Depois do trabalhoso sacrifício, tal como já acontecera antes deste, houve música claro está e o Mando foi convidado a tocar o Dounumba da aldeia! Registamos um pouco dos preparativos, mas fomos logo avisados de que não poderíamos registar o sacrifício nem o seu local específico. – Nada de grave! O que nos levara a Kokoudouning era o registo do fabrico de um Djembé tradicional e disso não nos pudemos de forma nenhuma queixar. No dia seguinte partimos bem cedo para o mato e tivemos o privilégio que muito poucos “tocadores” de Djembé tiveram. Observamos o mítico corte do Lenké, árvore cuja madeira produz o melhor som para os Djembés, com direito a cerimónia incluído. O demónio que habita o Lenké autorizou o corte da árvore quando as nozes de cola lançadas ao ar pelo Mamady caíram ao chão numa posição especifica e esta foi derrubada pelo seu machado e pelo do seu irmão mais novo de nome Lanfiya. Daí foi cortado um cepo que logo ali, no mato, foi desbastado à machadada adoptando rapidamente a forma “bi-cónica “ de qualquer Djembé. Ainda muito tosco mas muito mais leve do que o cepo que lhe deu origem, a madeira foi levada no porta-bagagem da bicicleta até à sombra de uma Mangueira à entrada da aldeia, onde o trabalho foi concluído exemplarmente. Com uma boa forma, arestas bem limadas e bem banhado a “Tuloungbé” (vulgo Carité), procedeu-se então à montagem tradicional com pele de antílope. Uma pele cobre a cabeça do Djembé e é esta que, quando tocada com as mãos, vibra produzindo o som que conhecemos como o do Djembé (tal como qualquer bombo minhoto ao ser atingido pela força da grande baqueta). A outra pele é cortada numa fina mas longa tira em espiral das pontas até ao centro, que, depois de torcida sobre si mesma é posta assim a secar ao sol. Depois de seca fica rígida mas algo maleável e muito resistente, sendo depois utilizada como corda para aparelhar a primeira pele. Este método tradicional não permite a afinação do instrumento, ficando esta ao sabor da temperatura da pele. Tradicionalmente, antes de qualquer cerimónia, os músicos aqueciam as peles com palha a arder, como forma de as esticar, ou colocavam simplesmente os instrumentos ao sol ou em frente a uma fogueira. Com o calor a pele encolhe ganhando tensão e ganhando também um som mais agudo. – Afinaram-se assim milhares de Djembés em todo o Continente Africano durante milhares de anos. Hoje em dia, a montagem envolve apenas uma pele, que é tocada, sendo a segunda pele substituída por ferros e cordas de alpinismo. Isto permite esticar posteriormente as cordas de forma a afinar o instrumento. De tão tosco este Djembé se torna bonito e eu não poderia levar para casa melhor recordação desta viagem e do projecto que lhe deu origem. O Mando aproveitou para mandar fazer uns Cloches (sinos) para os doundouns dos Madandza, que certamente resistirão à fúria desmesurada do Zé Puto. Estes, feitos no Hamana, região de onde são originais, foram moldados a partir de uma placa de ferro com cerca de um centímetro de espessura, entre horas de carvão incandescente e marteladas impiedosas. - “Estes o Zé não vai partir carago” dizia-nos o Mando com um orgulhoso sorriso enquanto os segurava na mão.
Estava cumprida a missão em Kokoudouning e podíamos retornar à aldeia para preparar rapidamente a viagem à região do Faranah. No que me diz respeito, este regresso a Sangbarala após três dias de ausência foi o mais caloroso. As crianças do bairro correram até nós gritando os nossos nomes quando nos viram dobrar a esquina arredondada das palhotas e as minhas pernas foram abraçadas por meia dúzia de bracinhos pequeninos.
Foi Namori Djan, o Djembé Fola de Sangbarala e dono da palhota que nos alojou na aldeia, que nos telefonou de Conakry, antes de partirmos até Kokoudouning, para nos avisar que a morte de Fadouba Oularé não passava de um boato de muito mau gosto e isto, claro está, fez-nos rescrever com entusiasmo os planos da viagem. Após a chegada de Kokoudouning permanecemos um dia na aldeia e zarpamos para o Faranah ansiosos pelo encontro com Fadouba Oularé e foi na companhia deste que ficamos durante os três dias em que permanecemos na vila. Não ficamos a conhecer muito desta região pois o pouco tempo que lá permanecemos, passamo-lo na companhia deste senhor, mestre indubitável do Djembé e da percussão Malinké. A sua casa fica no topo de uma colina, tal como Sangbarala, quase banhada pelo Djoliba (Níger) e de onde se pode avistar a chuva lá ao longe sobre as verdes planícies. Apesar de muito perto do Centre Ville, a sua casa tem o isolamento necessário a uma estadia agradável. Já por seu lado a companhia de Fadouba e de alguns dos seus 34 filhos ultrapassa o escalão do agradável para um panorama quase surreal de divertimento e boa disposição. Este senhor nascido em meados da década de 30 tem um à-vontade fora do comum e uma postura hilariante.
Como já expliquei no último texto que escrevi para este blogue, Fadouba foi o primeiro solista dos Ballets Africains, criados em 1958 pelo ministro da cultura e desporto da altura, e à custa disso percorreu mundo. Tocou em muitos países de vários continentes e como o regime do presidente Sekou Touré tinha bases e ligações comunistas, estes Ballets ultrapassaram facilmente a chamada muralha de ferro permitindo aos Ballets chegarem a quase todos os países do mundo mais desenvolvido da altura. É por isto e por muito mais, uma das três lendas vivas do Djembé, apesar de bastante menos acessível do que as outras duas lendas que vivem na Europa e Estados Unidos, como Famoudou Konaté e Mamady Keita. Fadouba sempre viveu na Guiné e para o conhecer é preciso lá ir, com tudo o que isso implica para um ocidental. Sem o chapéu que já lhe é característico recebeu-nos com um abraço, como se já nos conhecesse, e convidou-nos a sentar. Conversamos um pouco sobre o boato da sua morte, sobre o estado actual da percussão Malinké, sobre os ritmos originais do Faranah, sobre a sua vida artística e a possibilidade de dar umas horas de aulas ao Armando, e, finalmente explicamos-lhe o que nos levava realmente a procurá-lo. Aí os meus receios perderam todo o sentido! Foi sorridente que nos disse que não entrava em demagogias e que só dizia a verdade (fossem todos assim!), que me cedia a tal entrevista e as tais aulas ao Armando.
Marcamos tudo para os dias seguintes, e fomos tratar das contas para a palhota do “economista”. Outra figura impar! O interior desta palhota apresentava os sinais do seu proprietário que não sei bem como descrever, visto apresentar uma peculiar indumentária e uma forma de estar não menos particular. Os preços eram exorbitantes e então pareciam surgir os primeiros problemas no Faranah. Estes nunca chegaram realmente a sê-lo pois a aparente intransigência do “economista” foi bastante contrastada pela modéstia de Fadouba, que, ao aperceber-se de como trocamos olhares entre nós sem saber bem o que fazer perante tais exigências, acabou por nos perguntar quanto estávamos dispostos a pagar. Apercebeu-se também certamente de que não éramos como são normalmente os brancos que ali chegam. Não éramos frescos na Guiné, conhecíamos os preços normais da comida, alojamento e aulas de percussão e creio que foi mais isso do que propriamente os olhares que trocamos que o fez deixar-nos decidir o que pagar. Apercebeu-se também de que éramos pessoas justas e humildes e não pode ele, Grande Fadouba, deixar de agir com a mesma justiça e humildade. Depois dos orçamentos acertados, pagamos adiantado e fomos conhecer a nossa espaçosa palhota com duas camas. Entrosamos amizade com os filhos músicos do velhinho e com um francês que vinha do México para aprender percussão. Alguns com rastas, e todos com uma pinta que comparo facilmente à das personagens do filme brasileiro “Cidade de Deus”, estes jovens têm, segundo o Mando, talento para a música tradicional da sua região, também, com um pai daqueles mal seria se não tivessem. Apresentaram-se sempre extremamente prestáveis e amigáveis e ficamos com pena de não termos oportunidade para os conhecer melhor, tal como a seu pai.
Tínhamos chegado ao Faranah com chuva e deixávamo-lo com um sol quente mas nunca tórrido. Retornávamos à, mundialmente mais famosa, aldeia Guineense de Sangbarala para os últimos registos e um descanso que nunca existiu antes de partirmos para o terceiro e ultimo capítulo desta viagem – o nosso regresso a casa.Chegados à aldeia, reencontramos o Miguel, o espanhol com quem combinamos um regresso até Marrocos em conjunto, distribuímos as ultimas roupas e bolas para a canalha, filmamos e fotografámos o que nos faltava, fomos a Kokoudouning buscar os Djembés e uns almofarizes que encomendamos para levar para casa e ultimamos os preparativos para a partida. Depósitos de água e gasóleo atestados, carregamos a Aurora com o pouco que lhe faltava e dormimos a ultima noite na praia do Djoliba. Eu e o Leal sob as estrelas, e o Mando na tenda, com o Banjo, que inicialmente dormia ao relento coberto somente por um lençol e que eu e o Leal metemos na tenda quase a empurrão depois de o acordarmos em sobressalto tal forte era a sua tosse. Rimo-nos bastante com as expectativas que tínhamos de o Banjo acordar a meio da noite sem perceber como poderia sair da tenda, ou de como reagiria o Mando ao perceber que tinha um “estranho” a dormir com ele na tenda. Neste período de despedida, pessoalmente, esforço-me por não me recordar muito do que esqueci e do que deixei por fazer. Espero que não nos falte nada para fazer render bem este peixe. Não vale mesmo a pena chorar sobre uma quantidade desconhecida de leite derramado e só me resta a esperança de ter registado o suficiente e com um aproveitamento razoável para beber mais do que o que deixei derramar. Nestas coisas derramamos sempre algum leite, mesmo que não nos apercebamos disso! Na última manhã que passamos na Guiné, acordamos, como de costume a custo do Armando, que é sempre o primeiro a deitar-se e inevitavelmente o primeiro a acordar. O Mama já estava na outra margem e foi com o Banjo e com o Alpha que estas e outras personagens se despediram de nós pela última vez nesta viagem. Soube-nos a pouco, esta soube-nos a pouco! Apesar nostálgicos (como dizia o DMX na ultima noite na praia) e tristes, estávamos entusiasmados com o regresso a casa e com a viagem que faríamos, desta vez com o hilariante e nunca aborrecido Miguel. Esperam-se grandes momentos com este espanhol que já correu mundo e certamente, Portugal está marcado a traço grosso na sua rota futura.
Da estadia na Guiné sinto-me forçado a fazer um balanço final sobre o estado deste país e sobre o nosso estado nele. A Guiné foi várias vezes comparada com Portugal, nas suas semelhanças, mas o que mais se destaca nesta comparação são as suas diferenças. Foi certamente o país mais caótico em que estive, no qual tudo funciona a empurrão e onde só o dinheiro vale alguma coisa. Isto é particularmente visível, como é óbvio, na capital onde impera a lei do cifrão e onde um branco é sempre sinónimo de muitos. A população sofre de uma taxa de desemprego bastante acentuada. As ruas têm electricidade regular apenas no centro da cidade enquanto que na periferia a têm na maioria das noites. Nesta mesma periferia há ruas com mais de vinte anos que ainda não têm saneamento ou pavimento.
Esta viagem mudou o interior – e exterior! – destes três jovens que partiram numa viagem que se lhes apresenta como “a primeira viagem única de uma vida”.
Ficamos mais “espertos”, mais audazes e mais atentos ao que nos rodeia. Tivemos oportunidade de, no meu caso e no do Leal, ter, como primeiro trabalho depois de um curso acabado, a oportunidade única de começar uma carreira profissional ou artística da melhor forma. E o Armando teve oportunidade de conhecer como nunca um país, uma cultura e uma música que adora. Entrevistou alguns dos seus ídolos e “figuras sagradas” e deu-se ao luxo de se alojar em casa deles. Safamo-nos bem na Guiné, apanhamos alguns sustos mas nunca desesperamos, fizemos bons negócios, muitos quilómetros e aprendemos muito. Escola da vida… Amanhã a Aurora arranca cedo e não sei se este texto entrará para o blogue neste dia ou se terá que esperar mais alguns até que entremos na Mauritânia –partindo do principio que em Nioro não haverá Internet e que sairemos de Bamako ainda antes dos Afrocyber-Cafés abrirem as portas ao público.
Africa acima, em tom de plágio, voaremos altos e sonhadores!
“Jusq à ici, tout va bien, le important c’est pas la choute... c’est la aterrisaje!“ – “Ou bien? Voilááhh!!!! C’est ça quoi?! – Merci!”
Mentor:Armando Santos
6 comentários:
Bem...nem sei como começar! Com uma coisa a mais e algunas a menos, se me cruzasse contigo na rua não te conhecia!: cabelo...nenhum; alguns quilos a menos...; uns pelos a mais por cima do lábio superior e em vez de Ricardo Leal passaste a ser Ricardo Santos...enfim! Estás bem difarçado...!Pensando agora no teu regresso,tenho que pensar em reforçar a dispensa...Bom, falando agora da viagem, coitada da "aurorinha" mais carregada que nunca...!Tenham cuidado...claro que têem, como diz o Nuno e bem, a vida com as suas experiências boas ou menos boas ensina-nos...Vão dando notícias e agora chega de conversa...um beijão grande de toda a família e amigos que estão sempre a perguntar por ti...tenho-lhes dito que regressas em Maio mas estou confiante que chegam mais cedo...avisem o regresso, pois esta gente que vos patrocinou merece estar à vossa chegada e claro que nós família não esperamos outra coisa.....Beijão grande do paizão, da Rita e de mim um do tamanho do mundo.Beijos ao nuno, ao Mandinho e ao espanholito, que sem o conhecer já gosto dele.........Beijos................
Eh... demais!
As fotos tão lindas assim como o texto.
bjinhos para todos um especial para o meu primo nuno
:)
cada vez mais inspirador*fotos bonitas a demonstrar um percurso bonito
beijinho
Notícias finalmente!!!!
Grande aventura a vossa: risos, rios, cheiros, sabor das comidas, percursos, caminhos, poeiras, espaços sem fim, desafios, conhecimentos, histórias de gente grande, descobertas ímpares!
Adivinho como vai ser difícil o "voltar à realidade"!!!!
Bom regresso... cá vos esperamos. beijos de toda a gente Rose
Força ai camaradas...espero-vos em Junho/Julho, sei que não dispensam uma estadia de pelo menos um mês em Marrocos!!
"Que lindas pah"
Escrevo apenas para enviar 3 beijos.
Primeiro um muito grande para esse grande grande fotógrafo, o ricardo...eu já era tua fã mas agora mais do que nunca...simplesmente adoro as tuas fotos.. estão lindas!!
depois dois beijinhos igualmente gds para o nuno e para o mandinho.
continuem o bom caminho!!
beijinhos da susaninha, a pires;)
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